Distinção
O Pai se escreve
sempre com P grande
Em letras de
respeito e tremor
Se é Pai da
gente. E Mãe, com M grande.
O Pai é imenso. A
Mãe, pouco menor.
Com ela, sim, me
entendo bem melhor:
Mãe é muito mais
fácil de enganar.
(Razão, eu sei,
de mais aberto amor.)
Carlos Drummond de Andrade
Diálogo
No banco do jardim o velho conversando
uma forma de
flor.
O amor dos cachorrinhos oferta-se em
exemplo inútil para o velho
maligno para a flor.
O velho conversando o banco do jardim
onde a flor deserta.
O velho conversando-se É banco de jardim
Mas em jardim nenhum.
Carlos Drummond de Andrade
Nomes
As bestas chamam-se Andorinha, Neblina ou Baronesa, Marquesa,
Princesa. Esta é Sereia, aquela, Pelintra e tem a bela Estrela.
Relógio, Soberbo e Lambari são burros.
O cavalo, simplesmente Majestade.
O boi Besouro, outro, Beija-Flor e Pintassilgo, Camarão, Bordado.
Tem mesmo o boi chamado labirinto.
Ciganinha, esta vaca; outra, Redonda. Assim pastam os nomes pelo
campo, ligados à criação. Todo animal é mágico.
Carlos Drummond de Andrade
Fim
Por que dar fim a
histórias?
Quando Robinson Crusoé
deixou a ilha, que tristeza para o leitor do Tico-Tico. Era sublime viver para
sempre com ele e Sexta-feira, na
exemplar, na florida solidão, sem nenhum dos dois a saber que eu estava aqui.
Largaram-me entre marinheiros-colonos, sozinho na ilha povoada,
mais sozinho que Robinson, com lágrimas desbotando a cor das gravuras
do Tico-Tico.
Carlos Drummond de Andrade
País do Açúcar
Começar pelo canudo passar ao branco do pastel de nata, doçura em
prata, E terminar no pudim?
Pois sim.
E o que bóia na esmeralda da compoteira: Molengos figos em calda, e o
que é cristal em laranja, pêssego, cidra - vidrados?
A gula, faz tanto tempo, Cristalizada.
Carlos Drummond de Andrade
Porta da Rua
Vive aberta a porta da casa ninguém entra
para furtar.
Por que se
fecharia a casa?
Quem se lembra de
furtar?
Pois se há vida na casa, a porta há de
estar, como a vida, aberta.
Só se fecha mesmo esta porta para quedar,
ao sonho, aberta.
Carlos Drummond de Andrade
Receita de um Ano Novo
Para você ganhar belíssimo Ano Novo cor do arco-íris, ou da cor da sua
paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior) novo, espontâneo, que de tão perfeito
nem se nota, mas com ele se come, se
passeia, se ama, se compreende, se
trabalha.
Você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens? passa telegramas?) Não precisa fazer lista
de boas intenções para arquivá-las na
gaveta.
Não precisa chorar arrependido pelas besteiras consumidas nem parvamente acreditar que por decreto de
esperança a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações, liberdade com cheiro e gosto de pão
matinal, direitos respeitados, começando pelo direito augusto de viver. Para
ganhar um Ano Novo que mereça este nome, você, meu caro, tem de merecê-lo, tem
de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente. É dentro de você que o Ano Novo cochila E
espera desde sempre.