segunda-feira, 2 de março de 2015


Distinção


O Pai se escreve sempre com P grande
Em letras de respeito e tremor
Se é Pai da gente. E Mãe, com M grande.

O Pai é imenso. A Mãe, pouco menor.
Com ela, sim, me entendo bem melhor:
Mãe é muito mais fácil de enganar.

(Razão, eu sei, de mais aberto amor.)


                                                                           
    
Carlos Drummond de Andrade


Diálogo

No banco do jardim o velho conversando
uma forma de flor.

O amor dos cachorrinhos oferta-se em exemplo inútil para o velho
maligno para a flor.

O velho conversando o banco do jardim
onde a flor deserta.

O velho conversando-se É banco de jardim 
Mas em jardim nenhum.

   
 Carlos Drummond de Andrade

Nomes

As bestas chamam-se Andorinha, Neblina ou Baronesa, Marquesa, Princesa. Esta é Sereia, aquela, Pelintra e tem a bela Estrela.
Relógio, Soberbo e Lambari são burros.
O cavalo, simplesmente Majestade.
O boi Besouro, outro, Beija-Flor e Pintassilgo, Camarão, Bordado.
Tem mesmo o boi chamado labirinto.
Ciganinha, esta vaca; outra, Redonda. Assim pastam os nomes pelo campo, ligados à criação. Todo animal é mágico.



   
 Carlos Drummond de Andrade

Fim


Por que dar fim a histórias?
Quando Robinson Crusoé deixou a ilha, que tristeza para o leitor do Tico-Tico. Era sublime viver para sempre  com ele e Sexta-feira, na exemplar, na florida solidão, sem nenhum dos dois a saber que eu estava aqui.

Largaram-me entre marinheiros-colonos, sozinho na ilha povoada,
mais sozinho que Robinson, com lágrimas desbotando a cor das gravuras do Tico-Tico.



   
 Carlos Drummond de Andrade

País do Açúcar
Começar pelo canudo passar ao branco do pastel de nata, doçura em prata, E terminar no pudim?

Pois sim.
E o que bóia na esmeralda da compoteira: Molengos figos em calda, e o que é cristal em laranja, pêssego, cidra - vidrados?

A gula, faz tanto tempo, Cristalizada.










    
Carlos Drummond de Andrade

Porta da Rua 


Vive aberta a porta da casa ninguém entra para furtar.
Por que se fecharia a casa?
Quem se lembra de furtar?

Pois se há vida na casa, a porta há de estar, como a vida, aberta.
Só se fecha mesmo esta porta para quedar, ao sonho, aberta.


Carlos Drummond de Andrade

Receita de um Ano Novo

Para você ganhar belíssimo Ano Novo cor do arco-íris, ou da cor da sua paz, 
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido 
(mal vivido talvez ou sem sentido) 
para você ganhar um ano não apenas pintado de novo,  remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;  novo até no coração das coisas menos percebidas 
(a começar pelo seu interior) novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,  mas com ele se come, se passeia, se ama, se compreende,  se trabalha.
Você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,  não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens? passa telegramas?) Não precisa fazer lista de boas intenções  para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido pelas besteiras consumidas  nem parvamente acreditar que por decreto de esperança a partir de janeiro as coisas mudem

e seja tudo claridade, recompensa, justiça entre os homens e as nações, liberdade com cheiro e gosto de pão matinal, direitos respeitados, começando pelo direito augusto de viver. Para ganhar um Ano Novo que mereça este nome, você, meu caro, tem de merecê-lo, tem de fazê-lo novo,  eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente. É dentro de você que o Ano Novo cochila E espera desde sempre.